BON VOYAGE (1) DOS AÇORES A CABO VERDE (1)
Abril 04, 2025
Tarcísio Pacheco
(publicado no semanário ILHA MAIOR, da ilha do Pico, Açores, a 5 de abril de 2025
BON VOYAGE (1)
Cabo Verde (1)
Heliodoro Tarcísio
Sempre adorei viajar, em qualquer altura, por quaisquer motivos exceto de saúde e mesmo assim, é possível usufruir de bons momentos em qualquer circunstância. Quando a minha filha mais velha, Bárbara, entrou para a faculdade e estava hesitante entre os cursos de Serviço Social e Turismo, aconselhei-lhe o Turismo, “tens alma de viajante, filha” disse-lhe eu. E, atualmente, ela trabalha em Turismo, adora e viaja imenso. Quanto ao meu caso, quatro filhos, o trabalho, a falta de tempo e alguma ansiedade de voar, não fizeram de mim o viajante que queria ter sido. Mesmo assim, vivi algumas aventuras, especialmente em viagens marítimas.
Quando o meu amigo, Florêncio Moniz, me convidou para escrever umas crónicas de viagem para o Ilha Maior, não foi difícil aceder, motivado pela amizade com o Florêncio, velho amigo e colega de faculdade, o apreço pelo Dr. Manuel Tomás, meu antigo colega na escola C+S de S. Roque e o amor pela ilha do Pico, onde, há séculos atrás, vivi um ano maravilhoso, que recordo com saudade. Sendo Sagitariano, logo curioso e aventureiro, tenho no meu mapa astral, uma certa energia de Virgem, que me leva a ser, por vezes, todo organizadinho. Tinha, por isso, pensado em escrever cronologicamente. Mas acabei inspirado pelas belíssimas crónicas de Cabo Verde do Florêncio. E então, aí vai a minha experiência única de “morabeza”, em 2 partes.
O ano era 2001. Desde criança, apaixonado pelo mar, nesse ano, ainda tinha o meu primeiro veleiro de cruzeiro, o Zeilen, um pequeno Waarschip 20 holandês, famoso na Holanda, que adquiri no Faial em 1998. A marina de Angra estava então em início de construção e os nossos barcos costumavam ser içados para terra em setembro e lá ficavam pelo Porto Pipas todo o Inverno. No ano de 2000 fiz amizade com o Pascal, francês, proprietário e skipper do ARION, um ketch em ferrocimento, com 9.60 metros de comprimento, de construção caseira, em que o Pascal, um médico homeopata de Uzeste, perto de Bordéus, navegara desde França até aos Açores. O plano dele era, mais tarde, prosseguir para sul. Fiquei a tomar conta do ARION durante o Inverno e pouco a pouco foi-se cimentando a ideia de abalar com o Pascal no Verão seguinte. Na época era casado e já tinha 3 filhos, por isso, era mesmo só um mês de férias. E assim foi, em maio de 2001 o Pascal voltou, com o seu amigo, Phillipe, um notário francês e abalámos os três rumo a Cabo Verde, num dia chuvoso e sombrio do início de junho.
Esta foi a minha viagem oceânica mais longa, como tripulante e sempre em alto-mar. Demorámos 15 dias, de Angra do Heroísmo à cidade do Mindelo, em rota direta. Partimos com mau tempo, o que nunca é bom. Havia muita ondulação e depois de colocarmos o barco a navegar à vela, o Pascal e o Phillipe atiraram-se literalmente para o chão, a vomitar e ficaram doentes durante 3 dias. Eu já estava mais calejado pelas aventuras com o Zeilen; mas, mesmo assim, também não tinha muito apetite e durante 3 dias, foi só sopinha e fruta. Só fiquei doente um dia, depois de ter abusado de uns deliciosos pudins franceses em lata, que só eu comia. Depois, as coisas normalizaram-se e instalou-se a rotina duma viagem oceânica em veleiro. Foi antes do GPS, o Pascal fazia a navegação com o seu sextante, determinando diariamente a nossa posição e o rumo e eu e o Phillipe fazíamos tudo o resto, mareação de velas, cozinhar, arrumar e limpar. Essa viagem teve de tudo um pouco. Não nos deparámos com nenhuma tempestade séria, mas houve dias de larga e alta ondulação oceânica, com ondas de 5 a 6 metros, de nordeste. Houve dias de chuva e dias de sol, em que aproveitávamos para nos despirmos no convés e nos lavarmos com baldes de água salgada. Lembro-me que o Pascal era um francês típico, muito poupadinho, não nos deixou nunca ligar o motor, para não gastar gasóleo e não nos deixava ligar as luzes de navegação à noite, para não gastar baterias. Dizia para ligarmos uma lanterna de mão se nos cruzássemos com navegação à noite. Tínhamos uma windvane (piloto automático mecânico, de vento), mas à noite, fazíamos quartos de leme de 3 horas (das 21h às 09h). Num desses quartos, estava eu sozinho no cockpit e lembro-me que estava uma noite horrível, sinistramente sombria, havia total calmaria, o barco boiava numa espécie de charco pantanoso, o céu, o mar e o próprio barco, tudo era cinzento e sem forma; fiquei a contar os minutos para terminar o meu quarto e ir dormir. Antes o mar bravo. (continua)