BAGA NATALÍCIA E ADOCICADA
Dezembro 26, 2019
Tarcísio Pacheco
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BAGA NATALÍCIA E ADOCICADA
HELIODORO TARCÍSIO
Habitualmente, mantenho-me afastado do Diário Insular na quadra de Natal. Um leve e saudável cinismo maduro trouxe-me imunidade contra a infeção própria da época, uma forma de vida parasitária do vírus da gripe, que tem uma sintomatologia bem definida nos dias de hoje, pelo menos no mundo cristão: amor a prazo, caridade concentrada, convenção social, ritualismo religioso, consumismo capitalista e comida e bebida à fartazana. Quem me conhece, sabe que pode esperar de mim nesta quadra a mesma coisa que no resto do ano. No Natal sou como no Carnaval embora mais agasalhado e menos bronzeado do que no Verão. Com os mesmos amores e rancores e uns eventuais quilos achocolatados a mais que depois se perdem, janeiro fora.
Este ano, não tinha planos diferentes. Só que, este ano, o Armando Mendes pediu-me que escrevesse algo sobre o Natal. E ele raramente me pede alguma coisa. Falou-me com meiguice natalícia. Fiquei inclinado a dizer que sim. Talvez o espírito do Natal me tenha apanhado com as defesas em baixo ou esteja a envelhecer e a ficar mais emocional.
Por outro lado, se viesse escrever aqui sobre o Menino Jesus nas palhinhas deitado, milagres de Natal, missas Galináceas ou concursos de presépios, as pessoas pensariam que havia sido internado em S. Rafael. Já os fantasmas de Natal do Mr. Scrooge me parecem bem mais interessantes. Contudo, escusamos de ser tétricos. Para isso, podemos sempre relembrar as mensagens de Natal de Cavaco Silva. Desculpa, Cavaco, sei que é Natal, mas não resisti, consola-te lá com o teu bolo-rei da praxe. Mas come de boca fechada, pelo amor do Menino Jesus.
Fui escavar no baú das minhas memórias. Entre outras, há duas historietas que, de uma forma ou de outra, relaciono com o Natal. É uma modesta contribuição, não deve deixar ninguém de lágrima ao canto do olho. Gosto de me manter fiel ao meu estilo. Ambas as historietas se passam na década de 80, quando era estudante universitário em Ponta Delgada.
Nessa época, o futebol de cinco dava os primeiros passos nas ilhas, ainda se jogava futebol de salão, com uma bola mais pesada e menos saltitona, que não podia subir acima do joelho. Em S. Miguel disputava-se então um animado campeonato da modalidade, organizado até em 2 divisões, tal era o número de equipas aderentes; a única regra era que os jogadores de futebol de onze não podiam participar. A Associação Académica da Universidade dos Açores participava com uma equipa, da qual eu era o capitão. Sim, porque eu tenho um passado no futebol, as grandes diferenças entre mim e o CR7 é que eu não sou vaidoso e temos uma discrepância menor em termos de impulsão. Nessa equipa, além de mim próprio, como é evidente, destacavam-se jogadores com qualidade, dos quais relembro o Mendes, o nosso goleador, que tinha sido júnior do FCP, o Chico Espiguinha, que havia jogado no Juventude de Évora ou o Carlos Lobão, membro de uma conhecida família de futebolistas dos Flamengos, no Faial. O facto é que nunca perdíamos um jogo. Chegávamos ao Natal sempre à frente. Dávamos grandes tareias. Potencialmente, éramos campeões. Logicamente, éramos odiados, os totós da Universidade. O problema é que no Natal, a maior parte de nós, oriundos de outras ilhas ou do Continente, ia de férias. E, no Natal, o campeonato não parava em S. Miguel. Perdíamos sempre 2 ou 3 jogos por falta de comparência. A partir de janeiro, voltávamos a jogar. Mas, rapidamente atingíamos o máximo de faltas de comparência. Ainda andámos 2 anos nisto, a pedir para nos adiarem os jogos marcados. Mas nunca nos atenderam. Sabiam que assim nos lixavam. Acabámos por desistir. Então, o Natal, para nós, era o princípio do fim, uma história triste, adequada à época.
A outra historieta tem a ver com um dos meus part-time da época, numa antiga casa de pasto, que já fechou, na rua de Lisboa. A clientela era pesadíssima, bêbados profissionais, tóxico dependentes, marginais, ex-presidiários, prostitutas, chulos e toda uma fauna de um submundo micaelense da época. Eu servia bebida e comida, mais bebida, das duas da tarde às dez da noite, de manhã ia às minhas aulas. Parava por lá um sem-abrigo local e eles na altura eram mais exóticos, menos comuns. Dormia não sei bem onde, para os lados da doca, fazia uns biscates e vivia do que calhava. Chamavam-lhe Pinóquio. Era popular lá na tasca porque lhe pagavam frequentemente um “penalty” (um copo enorme de vinho tinto) desde que o bebesse de um fôlego só, o que ele fazia de bom grado. Ás vezes conversava com ele, por isso sabia que era só no mundo, que dormia na rua e que passava muito frio. Num desses Natais não fui à Terceira, vieram a minha mãe e a minha irmã, que era criança. Organizámos uma consoada na casa onde eu viva, um apartamento que dividia com outros colegas na agora irreconhecível Avenida E. Vai daí, nesse ano, resolvi convidar o Pinóquio para cear connosco. Ele veio e passou-se bem a noite, o Pinóquio era humilde, em todos os aspetos. A páginas tantas, entre lágrimas, ele contou que passava muito frio pois só tinha um cobertor fino para se cobrir na rua. Ora, o cobertor da minha cama era quentinho e eu tinha outro. Fui buscar o cobertor e ofereci-lho, ele ficou bem contente. Até aqui tudo bem. O problema é que, sem pensar muito na altura (eu tinha 20 e poucos), ofereci o cobertor melhor, que não era o meu, era da casa, da minha senhoria. Esta ia lá a casa, frequentemente, ver se o pessoal não lhe tinha destruído o apartamento, o que era, na verdade, um risco constante. Não tardou a dar pela falta do seu cobertor. Interpelou-me, exigiu explicações. Eu gaguejei, não queria dizer a verdade. Propus-lhe que ficasse com o meu cobertor. Ela não aceitou, queria o dela. A coisa foi rolando, nunca comprei outro cobertor, um bom era caro e o pouco dinheiro que eu ganhava, poupava religiosamente para ir fazer inter-rail no Verão. Um dia cheguei a casa e ela tinha-me levado uma linda fotografia emoldurada, com um veleiro, presente de Natal da minha mãe, que eu havia pendurado por cima da cama. Fica uma coisa pela outra, disse-me a mulherzinha. Achei justo. Feliz Natal. popeye9700@yahoo.com