BAGA FELIZ NATAL (BB 128)
Dezembro 22, 2021
Tarcísio Pacheco
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BAGAS DE BELADONA (128)
HELIODORO TARCÍSIO
BAGA FELIZ NATAL – Há uma das anedotas do Joãozinho, que reza mais ou menos assim, numa carta ao Pai Natal: “Querido Pai Natal, seu estupor velho e barrigudo, tenho-te pedido um carro de bombeiros e tu tens-me trazido, todos os anos, porcarias de cuecas e meias às carradas. Vê lá se este Natal atinas senão, quando te vir, a ti e às tuas renas sarnentas, vou dar cabo de vocês à pedrada”. Ao que o Pai Natal respondeu: “Meu querido Joãozinho, não te preocupes, relaxa. Este ano vou incendiar a tua casa, por isso, vais-te fartar de ver carros de bombeiros…”.
E é isto, meus caros, o famoso espírito de Natal é por aí…
Há muitos anos, quando eu era um jovem, cabeludo e bem-parecido estudante universitário em Ponta Delgada, num ano em que não fui à Terceira e a minha mãe e a minha irmã foram passar o Natal comigo a S. Miguel, havia por lá um sem abrigo, meio desgraçado, rapaz ainda novo, figurinha tosca, conhecido como Pinóquio, que costumava parar na tasca “O Campeão” (já desaparecida), do meu amigo Luís “Americano” (também já desaparecido), na rua de Lisboa, em frente à casa da santíssima mãe do beato Mota Amaral. Na época, 1980 e poucos, eu tinha lá um part-time, em que aturava bêbados e verdadeiros mafiosos, com a ideia de juntar umas massas para fazer o inter-rail no Verão. O Pinóquio gostava de aparecer por lá porque lhe pagavam “penalties”, grandes copos de 0.5 L de vinhaça, com a condição dele os empinar de um fôlego só, façanha em que era exímio e muito aplaudido. Nesse ano, deu-me na cabeça convidar o Pinóquio para o jantar de consoada do dia 24 de dezembro, lá no apartamento da Avenida E antiga, onde eu então morava, com outros colegas. O Pinóquio foi, o jantar correu bem, farto e bem regado (mas sem penalties), ele a contar a sua triste vida e a minha mãe de lágrima à esquina do olho. A folhas tantas, o Pinóquio confirmou que dormia na rua, na zona da doca e que passava muito frio porque nem tinha um cobertor decente. Condoí-me, fui ao meu quarto e ofereci-lhe o cobertor da minha cama, fofo, quentinho e azul. O Pinóquio adorou. O problema é que o cobertor, a cama e o apartamento pertenciam todos a uma mulher de Ponta Delgada, a minha senhoria. Ela não se mostrou sensível ao espírito da época e em janeiro exigiu o seu cobertor. Eu ofereci-lhe um cobertor meu, uma coisa felpuda e amarela, em forma de assim. Ela não gostou da cor e vingou-se, um dia, levando consigo, à traição, um belo quadro com um veleiro que ficava por cima da minha cama, oferta de Natal da minha mãe, conhecedora da minha maluqueira por barcos.
Nesse dia longínquo, talvez eu tenha sido acidentalmente tocado pelo verdadeiro espírito do Natal. Disso, eu tenho saudades. Disso e da minha mãe, morta há um ano, da inocência da infância, da nossa consoada rica em família, da árvore de Natal verdadeira, a cheirar a verde, do entusiamo infantil da minha mãe, a montar a sua extensa coleção de bolas e as suas séries de lâmpadas coloridas, compradas na Base, enquanto cantávamos o Jingle Bells, muito desafinados. Saudades dos chocolatinhos americanos, dos autênticos, dos legítimos, Três Mosqueteiros, Butterfingers, Hersheys, Almond Joy, das minhas primeiras maminhas de preta (kisses). Saudades dos presépios, montados com leivas e musgos apanhados na mata do Estado, às Veredas, enfeitados com uma enorme coleção de casinhas de papel (a minha mãe era professora do primário), figurinhas de cerâmica variadas e paletes de ovelhas. O meu pai, vivo e agora com 80 anos, sisudo, mas muito habilidoso, engenheiro de quase tudo, contribuía com moinhos que giravam e riachos de água corrente em leito de papel de prata. Saudades da excitação daquela noite, de nos mandarem deitar cedo, que era para o Menino Jesus ter condições de vir com as prendas (era então o Menino, não passávamos cartão ao Pai Natal, essa figura nórdica e estranha, a Lapónia ficava em cascos de rolha e já sabíamos que as renas não voam). No dia seguinte, depois de almoçar os restos, íamos passear de carro (de cu tremido, como dizia o meu pai…) para a estrada 25 de Abril, na Praia, pois a minha mãe, uma eterna menina de feitio difícil, fascinava-se com as feéricas iluminações nas casas dos americanos.
O Natal de hoje é o que sabemos. A religião católica e as suas missas galináceas nada me dizem, do ponto de vista intelectual, não lhe vejo pés nem cabeça. Resta o consumismo desenfreado, a tirania das prendas, o abuso de comida e bebida e agora, até o clássico fantasma do Natal de Dickens cedeu o seu lugar ao espectro do Covid.
O que é que ainda vale a pena? Aproveitarmos bem a oportunidade para estarmos junto daqueles que amamos e que nos amam, enquanto estamos vivos e de saúde. Comida e bebida são sustento do corpo, árvores, luzes, fitas e presentes, é tudo décor de época. O sustento da alma é a companhia, o calor do amor e da amizade, o abraço e o beijo, o olhar franco e desinteressado, a partilha, os baús de memória. Mais do que clientes e peças substituíveis do sistema, somos criaturas de energia e emoções. Aproveitem bem e amem muito. A vida é curta, mas o amor é para sempre. Feliz Natal.
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