BAGA CHINESA (BB 112)
Julho 15, 2020
Tarcísio Pacheco
BAGAS DE BELADONA (112)
HELIODORO TARCÍSIO
BAGA CHINESA – Ná, não tem nada a ver com o corona vírus nem com comida chinesa. As longas e quentes noites de Verão são propensas à introspeção. Tem a ver com isso. E com acordar um dia e perceber que já temos memórias a partilhar, desconhecidas de muitos e esquecidas por outros.
Na atualidade, os chineses pululam pelas nossas ilhas e um pouco por todo o lado. Servem-nos comida feita em wok ou abrem aquelas lojinhas armadilhadas, onde é impossível entrar e sair sem levar alguma coisinha. Preenchem-nos necessidades que nem suspeitávamos que tínhamos.
Mas na Terceira da minha infância e adolescência, tínhamos uma única família chinesa, a “nossa” e eu era amigo deles. Eram uma mãe e dois irmãos que passaram a Portugal, fugidos de uma guerra qualquer. Essa parte da história, se algum dia a soube, já a esqueci. E, mais tarde, vieram encalhar nos Açores. Cada um abriu a sua loja. Um em Angra e outro na Praia. Eram as nossas “Casa Chinesa”. A de Angra ficava ali na rua Direita, já quase no Pátio da Alfândega, um pouco mais acima da antiga pastelaria “Verónica”. As de agora têm nomes diversos, “Super Euro”, “Chinaçor”, “Macau”, etc., mas naquela época, isso não era preciso porque não havia outras.
O pai era o senhor Noé Chu Peng Fung ou Big Huan, como lhe chamava a esposa, a doce e simpática D. Francisca, uma senhora continental, de apelido Nobre. E tinham cinco filhos, quatro rapazes e uma moça, a saber, por ordem de idades: o Jaime, a Gina, o Rui, o Jorge e Zé. Todos eram Nobre Chu, de apelido. Viviam a meio da rua do Rego, junto à antiga sede do PCP. O Rui é da minha idade e fomos amigos próximos durante anos, até a vida nos levar em diferentes direções. O Jorge é da idade do meu irmão, Tomás e davam-se bem também. Estas amizades começaram no Liceu e porque o meu pai era amigo do Sr. Noé e tinham outros amigos em comum, por exemplo, o Sr. Peixoto, dono da antiga “Larissol”, na rua da Sé e o Sr. Aragão, que vendia peixes de aquário num 3.º andar da rua de Santo Espírito. Lembro-me de ir lá ver piranhas, numa época em que nem televisão havia ainda por cá.
As crianças Nobre Chu eram bonitas e exóticas, na Angra dos anos 70. Tinham uma boa mistura genética e eram um belo símbolo da nossa presença no mundo. De porte atlético e com aqueles cabelos escuros, lisos, brilhantes e fortes, próprios de muitos povos orientais, com os olhinhos levemente oblíquos, davam nas vistas no Liceu e despertavam paixões. A Gina era mais velha do que eu, mas lembro-me bem de ter uma quedazinha por ela (nem de longe correspondida) e de um dia em que aguardávamos os nossos pais no colégio de S. Gonçalo, onde todos andávamos e em que ela chorava com medo da trovoada e eu procurava confortá-la.
O Sr. Noé, de Big nada tinha. Fisicamente, era um cliché. Pequenino, amarelinho, era só pele e osso e fumava como uma chaminé. A mãe dele morava sozinha, perto da loja, na rua dos Minhas Terras e era outra figurinha, com a sua indumentária à Mao Tsé-Tung as suas refeições de arroz comido com pauzinhos numa tigelinha e um português quase incompreensível, cheio de “L” em vez de “R”, que nos fazia rir. Nas longas noites dos acampamentos da família, na velha Salga do campismo selvagem, o meu pai adorava contar histórias do Sr. Noé, de quem gostava muito. Lembro-me de uma que era recorrente e que fazia o meu pai rir até às lágrimas. Uma vez, o Sr. Noé foi a Lisboa, na TAP, tratar de negócios. Acontece que, no regresso, após a aterragem, nas Lajes, chovia copiosamente e não havia maneira de parar. Naquela época, não havia cá autocarros de pista. Os passageiros foram saindo até que o pessoal de bordo reparou que restava um único passageiro e que não parecia fazer tenções de abandonar o aparelho. Era o Sr. Noé. Instado a sair, respondeu algo como: “Está a chovel muito, não qué molhá”. Ofereceram-lhe um guarda-chuva, mas ele disse que não também, que não “quelia molá pé”. Tiveram lugar, então, negociações complicadas, mas a história teve um final feliz, com um comissário de bordo a atravessar a pista com o Sr. Noé ao colo, segurando um guarda-chuva.
Em janeiro de 1981, saí da ilha, para cursar a faculdade e fui perdendo de vista as personagens da minha infância e adolescência. Mas sei o que é feito de todos. O chinês da Praia tinha um único filho, que andava connosco no Liceu e cujo nome nunca vi escrito, mas me soava como Ta Pu. Parece que se formou em Medicina e foi viver para Macau. Quanto aos “nossos” chineses, a maior parte da família mudou-se para o Continente, para a área de Sines. Estão por lá, o Jorge, o Zé e a Gina, que foi enfermeira em Lisboa, até se aposentar. O Sr. Noé e a D. Francisca, infelizmente, já faleceram. O Jaime casou com uma picoense e vive nas Lajes do Pico, há largos anos, onde foi, até se aposentar, funcionário do antigo BCA. O meu amigo de infância, o Rui, curiosamente, foi o único que permaneceu na Terceira. Casou pela Agualva, com uma moça emigrante e é funcionário da Equipraia, na Praia da Vitória, há largos anos. Continuamos amigos, mas raramente nos vemos. Já está de cabelo bem grisalho. Se ele, por acaso, vier a ler isto, espero que se lembre do amigo de infância, das histórias que vivemos e partilhámos, do nosso interesse mútuo por motos, caça submarina, bailaricos e “gajas”. POPEYE9700@YAHOO.COM