ANGRA DO HEROÍSMO - CIDADE NASCIDA DO MAR
Janeiro 28, 2009
Tarcísio Pacheco
IMAGEM: http://angra-do-heroismo.portais.ws/
Raul Brandão, um famoso escritor português que as visitou por volta de 1927, chamou-lhes Ilhas Encantadas e sobre elas escreveu um livro com o mesmo título. São as ilhas dos Açores, território português no meio do Atlântico Norte, na actualidade promovido a extremo ocidental da União Europeia. Brandão delas se encantou e com efeito há certas dias em que o azul profundo do mar atlântico e o verde húmido que a natureza pincelou por toda a parte se juntam à paz e ao silêncio de uma calma tarde de Verão para criar uma curiosa sensação de intemporalidade e deslocamento que têm tanto de mágico como de comovente…
Há lendas e relatos antigos que referem incursões e visitas de outros povos, piratas berberes, aventureiros vikings e até exploradores fenícios e cartagineses… Mas a verdade é que a História concede o crédito da descoberta oficial destas ilhas a um navegador português, Diogo de Silves, do qual pouco se sabe mas que se integrava na emergente epopeia da expansão portuguesa do séc. XV; assim, no decurso de uma viagem exploratória para o desconhecido mar de Oeste, este piloto luso terá avistado a ilha de Santa Maria, a mais oriental. Seguiram-se depois as restantes oito ilhas, S. Miguel, Terceira, S. Jorge, Graciosa, Pico, Faial, Flores e Corvo, ao longo de todo o século XV. Depois da descoberta e sob a orientação e patrocínio do famoso príncipe Infante D. Henrique, seguiu-se um longo e árduo período de desbravamento e colonização; as ilhas eram de terreno fértil e águas abundantes mas de natureza agreste, com uma densa mata atlântica que ia quase até à borda de água e com o solo coberto de rochas basálticas.
A ilha Terceira rapidamente ganhou projecção entre as ilhas açorianas, devido à sua localização geográfica central no arquipélago, à sua dimensão média, ao seu relevo particular e sobretudo pelo facto de possuir um excelente porto natural, abrigado dos ventos predominantes de Oeste pela massa impressionante do Monte Brasil. Por isso, já no final do séc. XV, havia uma florescente povoação na costa sul da ilha, designada por Angra, erguendo-se à beira-mar, sobre rochas, leitos de ribeiras e antigos pântanos insalubres. Estrategicamente situada no centro do Atlântico Norte e no centro do arquipélago, a cidade de Angra foi crescendo, acompanhando os ritmos da Expansão Portuguesa pelo mundo. Em 1534, D. João III elevou-a à categoria de cidade, a primeira dos Açores. É também nesse ano que o Papa Paulo III a faz sede da nova diocese. Torna-se então o principal porto de escala no Atlântico Norte, fundamental face ás necessidades técnicas da navegação da época, com navios veleiros que, por razões de clima e meteorologia, relacionadas com os ventos e correntes predominantes, tinham obrigatoriamente, de fazer a chamada “volta do largo” quando rumavam à Europa; encontravam-se então na zona dos Açores, onde paravam para descanso das tripulações, tratamento e recuperação de doentes e aprovisionamento de água e víveres. É por isso que data de bem cedo o primeiro hospital de Angra, que ficava onde hoje se situa o quartel da Brigada Fiscal da GNR, muito perto da baía e comunicando com a Igreja da Misericórdia por uma passagem aérea em madeira.
A cidade de Angra foi-se desenvolvendo em íntima relação com o comércio marítimo e com as preciosidades transportadas nos porões dos navios, nomeadamente metais nobres e especiarias da “Rota das Índias”. A sua localização estratégica e a sua riqueza chamavam a atenção das grandes potências marítimas, Inglaterra, França, Espanha e Holanda, cujos navios demandavam o porto de Angra com frequência. As necessidades de defesa da cidade e da costa acessível levam à construção, no século XVI, das grandes fortalezas citadinas de S. João Baptista e de S. Sebastião, para além de uma cintura de pequenos fortes costeiros, por toda a ilha Terceira. Para reabastecer de mantimentos as naus da carreira das Índias. D. João III criou a instituição da Provedoria das Armadas, de que foi primeiro titular o fidalgo Pero Anes do Canto e que primeiro se instalou no bairro marítimo do Corpo Santo, no alto da falésia, dominando a baía.
Angra seria então, entre os séculos XVI e XVIII, uma rica e buliçosa cidade marítima, com a sua larga baía frequentemente repleta dos grandes navios de outrora, de naus e galeões, ancorados juntos ás encostas do Monte Brasil, para se protegerem dos ventos alísios de Oeste e uma florescente actividade de reparações navais, em estaleiros nascidos à sombra da falésia, na zona da actual Prainha e antigo Jardim dos Corte-Reais. As mudanças bruscas no tempo, tão características do clima açoriano eram, tal como agora, muito temidas pelos marinheiros, especialmente quando surgia o chamado “vento carpinteiro”, dos quadrantes sul a leste, que, face ás reduzidas capacidades de manobra dos veleiros de então, deixava como último recurso o corte da amarra, para poder ganhar o largo tão rapidamente quanto possível; quando isso não era possível ou tudo se desencadeava muito depressa, estes ventos provocavam inúmeros naufrágios, fazendo “garrar” o ferro pelos fundos e precipitando os navios contra as rochas da baía. É por isso que a baía de Angra e as suas imediações constituem um extenso cemitério marítimo, com muitos naufrágios referenciados, identificados ou localizados. Actualmente, encontra-se organizado um parque arqueológico subaquático, em que se pode visitar vários naufrágios de diferentes épocas e o chamado “cemitério das âncoras” ao longo dos socalcos submersos do Monte Brasil, onde, entre as cotas de 22 e 32 metros de profundidade, se podem encontrar cerca de 30 âncoras de diversas proveniências e tipologias, datadas dos sécs. XVI a XX. Um dos naufrágios visitáveis mais conhecido é o do navio de propulsão mista (vela e vapor), “Lidador”, de 78,67 metros de comprimento, construído em 1873 em Londres; este navio naufragou na baía de Angra em 1878, quando se preparava para iniciar uma viagem com emigrantes açorianos para o Brasil.
Os primeiros trabalhos de arqueologia subaquática na baía de Angra ocorreram com a expedição do britânico Sidney Wignal em 1972 e resultaram na recuperação de algumas âncoras e alguns canhões de ferro e bronze. A etapa seguinte seria apenas na década de 90, quando o Museu de Angra do Heroísmo assumiu todo o protagonismo nesta área e foi responsável por uma série de prospecções, em colaboração com instituições portuguesas e com os americanos do Institute of Nautical Archaeology. A peça mais emblemática então recuperada é um canhão de bronze, francês, da época de Francisco I, que se encontra permanentemente exposto neste museu. Na actualidade, prossegue o levantamento do património arqueológico subaquático dos Açores, a cargo da Direcção Regional da Cultura.
A partir do séc. XVIII, devido às vicissitudes da História, a cidade de Angra do Heroísmo, foi perdendo importância política, administrativa e económica, a favor da cidade de Ponta Delgada, cada vez mais a maior e mais importante cidade do arquipélago.
O golpe final aconteceu num passado recente, quando o Porto das Pipas perdeu o seu movimento comercial, através da deslocalização para o novo porto da Praia da Vitória. A cidade encontrou-se então numa encruzilhada da História, com uma baía que fora fulcro e testemunho de um passado riquíssimo mas que agora estava vazia de vida e animação.
Foi preciso então passar por um período de reflexão e debate, para encontrar novos caminhos. Após essa fase, algumas importantes decisões foram tomadas. Toda a orla marítima da cidade foi intervencionada, com reabilitação e consolidação das falésias, com a construção de uma marina, de um hotel de cinco estrelas e a reconversão do Porto das Pipas num espaço de recreio, lazer e serviços ligados à área náutica, assumindo-se também como escala de um pequeno tráfego de transporte marítimo de passageiros inter-ilhas.
Acompanhando esta corrente de renovação, um novo clube náutico surgiu entretanto, com sede no Porto das Pipas, o Angra Iate Clube, que veio enriquecer e diversificar a oferta de actividades náuticas na baía da cidade. Um grupo de onze pessoas, cujo vínculo comum era o amor pelo mar, fundou esta instituição em 27 de Outubro de 1995. O clube dedicou-se
à promoção dos desportos náuticos, tendo aberto escolas de vela ligeira e canoagem e uma escola de formação de navegadores de recreio. Correspondendo ao aumento de veleiros de cruzeiro na marina de Angra, o clube iniciou também um campeonato de vela de cruzeiro, com um extenso programa de regatas, na ilha Terceira e entre as diversas ilhas do Grupo Central. Continua vivo e activo, agora com uma nova direcção e instalado em nova sede no Porto das Pipas.
No momento actual, parece que a cidade de Angra do Heroísmo renasceu e encontrou a sua vocação no mundo de hoje. Cidade que nasceu do mar, de vocação marítima por excelência, cenário de naufrágios e batalhas navais, presa de piratas e corsários, cobiçada pelas grandes do mundo, cofre de tesouros, pisada por Vasco da Gama e seus pares, Angra do Heroísmo define-se agora como uma cidade museu, monumental, provedora de serviços, montra da História, palco da cultura e que, através da sua marina, se abre aos herdeiros das caravelas, os novos marinheiros, que percorrem os mares apenas por paixão e prazer.