O MORIBUNDO CARNAVAL TERCEIRENSE
Abril 10, 2008
Tarcísio Pacheco
IMAGEM: http://jogos.crescerfeliz.com/marchinhas-de-carnaval-chiquita-bacana
Um pouco antes do Carnaval 2008, li alguns artigos na imprensa terceirense, que iam no sentido de considerar que o nosso Entrudo estava bem vivo eem força. Discordeiem absoluto, por me parecer que tal perspectiva se baseava unicamente na previsão do número de danças e bailinhos. Contudo, esperei pelo desenrolar do Carnaval, antes de emitir uma opinião pública. Agora, neste tempo de Quaresma, olho para trás e, infelizmente, confirmo as minhas piores expectativas.
Posso falar com o conhecimento e a autoridade de quem já viu evoluir o Carnaval terceirense ao longo de várias décadas. Quando eu era criança, nas décadas de 60 e 70, lembro-me perfeitamente que tínhamos um animado e espontâneo Carnaval de rua. As pessoas, de todas as idades, tinham gosto em fantasiar-se, mascarar-se e ir para a rua, divertir-se. Pela noitinha, a rua da Sé ficava repleta de gente, passeando-se para cima e para baixo, de forma inocente, brincando e rindo. Usava-se muito o confeti e as fitas de papel colorido, abundantemente fornecidos pelas lojas do Pedrinho Amiguinho ou dos Espanhóis. Ainda há pouco tempo recordei com a minha mãe um episódio que jamais esqueci, em que eu, menino de pouca idade, enchi de confeti a boca de um magala que ria alarvemente encostado à porta da Dona Branca, para gáudio dos seus camaradas. As crianças e adolescentes brincavam muito com as populares “esguichas”, que podia ser qualquer objecto que expelisse água mas que eram frequentemente um tipo qualquer de pistola de plástico ou “baquelite”. Mais tarde evoluímos para os sacos de plástico e balões de água e tudo isso proporcionava animadas lutas que terminavam com toda a gente mais ou menos encharcada. Essas guerrinhas eram muitas vezes combinadas, outras vezes surgiam espontaneamente. Brincávamos ainda com pequenas e inofensivas quantidades de pólvora, sob a forma dos “beijinhos” (uma gota de pólvora embrulhada em papel colorido que se aquecia com um bafo quente e se atirava para o chão com força, onde explodia), “batrinicas” (para raspar no chão e deixar estalejar) ou “malaguetas” (miniaturas de paus de dinamite, com rastilho). Havia animação e espírito carnavalesco. Os adultos também se fantasiavam. Havia muitos bailes públicos e festas particulares em casa das pessoas, os famosos “assaltos”. Hoje em dia, tudo isso está perdido e creio que definitivamente. O Carnaval terceirense está reduzido à sua expressão mínima, a saber: danças e bailinhos de Carnaval, cortejo e tourada de estudantes. Tudo isso será, provavelmente natural, será a marcha inexorável do tempo, que tudo devora e modifica. Mas não aceito calado, patéticas proclamações públicas sobre a saúde do Carnaval terceirense. A verdade é bem outra e o problema é mesmo nosso porque noutras paragens o Carnaval anda animadíssimo. Nós é que não soubemos preservar as nossas tradições. Depois não me venham com o estafado chavão de que na Terceira é tudo uma festa pegada. Já vi velórios americanos bem mais animados.
Por exemplo, o “Baile de Máscaras” do Centro Cultural de Angra do Heroísmo, na sexta-feira, pareceu-me uma honesta e esforçada tentativa de reanimar a tradição dos bailes de Carnaval. Ainda na década de 90 realizaram-se alguns animados bailes, promovidos pelo TAC, por exemplo, ou pela organização da marcha oficial das Sanjoaninas. Mas nos últimos anos, esse tipo de bailes quase não se aconteceu. Esse baile do CCAH prometia muito, tanto que comprei os meus bilhetes com uma semana de antecedência e já só havia lugares nas “mesas dos cantos”. Previa-se um êxito retumbante, um serão animadíssimo num espaço nobre com todas as condições, incluindo jantar, exibição do bailinho mais cotado, concurso de fantasias e baile. Contudo, constituiu um rotundo fracasso, na medida em que de baile nada teve. Num baile dança-se ao som de música apropriada. Para principiar, durante o largo tempo de espera pela chegada de todos os convivas, ofereceram-nos repetitivamente o empacotado standard de música carnavalesca, do tipo “atravessámos o deserto do Sahara…” que ninguém pode ouvir sem náuseas por mais de uns 15 minutos. Tanto que tive de intervir e pedir que mudassem. Mudaram então para uns aceitáveis ritmos latinos. Paradoxalmente, na hora do “baile” mimosearam-nos, quase todo o tempo e insistentemente, com uns desajustadíssimos temas antigos de rock, impróprios para dançar. Nestas coisas convém que haja alguém com um mínimo de juízo, bom-senso e conhecimentos musicais. Senão, a impressão que fica é que a ideia era enxotar rapidamente a meia dúzia de resistentes. Bom, a partir do jantar, a coisa não tem grande história. O cardápio era vulgar mas a comida não era desagradável, embora por aquele preço se possa ter uma experiência gastronómica de qualidade, no novel Ambientes Com Sabores, por exemplo. O famoso bailinho da Agualva, “acabadinho de chegar” de uma digressão aos EUA, era realmente muito engraçado e foi o momento alto do serão. O concurso de fantasias desenrolou-se com a animação possível. Mas mal este acabou, as pessoas presentes deixaram bem claro que tinham vindo apenas jantar e ver um bailinho. O ambiente durante o jantar já tinha sido soturno porque havia pouca gente presente, quase só mesmo os comensais. Mas após o concurso de fantasias, metade debandou logo para casa, quiçá para assistir à novela da meia-noite “comme d’habitude”. Um terço continuou sentado na mesa, na cadeira quentinha. E somente um tímido terço deu um arzinho da sua graça e foi dançar para o palco, ao som da triste musiquinha que nos estava reservada. Ao fim de meia hora estava tudo acabado e a debandada foi geral. De animação, folia, espírito carnavalesco, euforia, alegria… nicles. Teimoso, peguei na minha amiga e ainda fomos dar uma volta pela cidade, procurando algum miraculoso foco de animação. Era 1 hora da manhã. Sexta-feira de Carnaval, Angra tristemente deserta, como uma Cabul, escondida de uma praga de mísseis. O anunciado baile na Casa do Povo da Terra-Chã, outrora recinto bem animado, estava às moscas. Idem e aspas para alguns pubs na cidade. Só encontrámos alguma animação, pois onde havia de ser, nas nossas “docas” (hehe, risota de escárnio), aquele peculiar tipo de animação proporcionado exclusivamente por gente muito jovem movida a muito álcool. Lá se deu um pezinho de dança, para fazer a digestão.
Não contente com esta história e provavelmente por espírito de masoquismo, acedi ao convite insistente de algumas queridas amigas e saí de novo no Sábado, desta vez para mais um espectral baile, no Clube Musical, uma agremiação que já teve relevância na animação da cidade. É confrangedor ver aquele imenso salão num Sábado de Carnaval com meia dúzia de gatos-pingados mais as moscas e mosquitos do costume. Saindo de lá, apercebemo-nos de que a animação dessa noite era na Tertúlia Tauromáquica, onde muita gente fantasiada se acotovelava, num tipo muito peculiar de animação. Há quem goste mas também não parece haver grande alternativa. No fundo, sobretudo os jovens têm de se encontrar em qualquer lado porque esses não ficamem casa. Eo que está a dar é uma coisa que varia, às vezes incompreensivelmente, muito ao sabor da novidade mas no momento é a Tertúlia (uma constante) e o Porto das Pipas.
Quanto ao dito Carnaval terceirense tradicional, tenho pouco a dizer sobre as danças e bailinhos. É uma importante manifestação de teatro popular, etc etc e arrebata toda a ilha, sobretudo nas freguesias. Tem vindo nitidamente a crescer nos últimos anos, relativamente ao número de gruposem exibição. Contudo, precisamente pelo elevado número de grupos, há muitas produções de baixíssima qualidade. E é um espectáculo puramente local, para nossa própria recreação, com atractivo, quando muito, para portugueses continentais, não comercializável para um público estrangeiro. E o que se passa no Teatro Angrense é vergonhoso, com a venda de bilhetes, que deviam ser quase gratuitos, dominada por um grupo de mafiosos que até já subcontratam tudo o que é vagabundo na cidade e revendem na candonga a preços absurdos, com elevada margem de lucro. Um cidadão comum que queira assistir aos eventos, têm de passar 3 dias e noites numa fila ou pagar a quem o faça. A culpa deste triste e caótico estado de coisas é das autoridades que organizam, que há muito deveriam ter encontrado um sistema qualquer mais justo e correcto.
Quanto ao cortejo e tourada de estudantes… Tenho assistido todos os anos e parece-me que há aqui problemas. Para já, é no mínimo inquietante, que num universo de estudantes muito mais amplo que há 15 ou 20 anos atrás, não haja um grupo de miúdos com capacidade de liderança, organização e criatividade e que tenha de ser uma comissão externa de não estudantes a organizar o evento; é perturbador que o “Liceu” (chamemos-lhe assim por comodidade…), como entidade, se tenha vindo a demarcar cada vez mais desta iniciativa tradicional até ao ponto de ficar completamente de fora, como no presente ano. Quanto ao cortejo, a sua qualidade vai variando por diversos motivos; este ano, pareceu-me bastante fraco, pela pouca inspiração na escolha dos temas a tratar e pela falta de criatividade nas “bocas” dos cartazes; nem sequer havia miúdos com piada na animação sonora do respectivo quiosque; faço excepção da ideia da “Rainha” que me pareceu uma feliz sátira das Sanjoaninas. Este ano, para variar, não fui à praça, talvez “escaldado” de anos sucessivos de pouca graça; pessoa de família que lá foi, não achou grande piada. O facto é que, tanto o cortejo como a tourada vivem muito da presença, inspiração e energia de “cómicos” espontâneos; quando eles não existem fica tudo muito sensaborão; já passaram alguns anos desde que alguém assim esteve envolvido, no ano do José Manuel Rosado. Daí para cá…Resumindo, “o tempo passa e a tradição não se amassa” ??? Pois olhem que se está amassando devagarinho…
Para quem quiser animação e estiver cansado de danças e bailinhos, resta, tendo tempo e condições para isso, rumar a outras paragens nesta época. Com o Brasil à cabeça, claro, mas sem perder de vista outros Carnavais que parecem bem animados por esse país fora, Sesimbra, Loulé, Mealhada, etc. Quanto ao Carnaval da Terceira, em minha opinião, em termos de animação está moribundo.
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